Já te falei das crianças, quando escrevi sobre O que estamos a fazer à geração dos nossos filhos?, mas tenho que escrever também algumas palavras sobre todas as pessoas em situação de fragilidade e vulnerabilidade. Seja porque estão grávidas, porque estão doentes, seja porque são mais idosos ou porque estão a morrer.
Na realidade, quando fui eu a adoecer, pensei muito sobre gratidão e como poderia encher o meu coração com esta emoção elevada e que faz maravilhas por nós. Nessa altura, agradeci muito pelo tempo que tive para criar laços fortes com o meu filho, por ter sido eu a adoecer e não o meu bebé ou as minhas irmãs. E lembro-me também de ter agradecido muito por estar acompanhada de pessoas que amo e que me ampararam numa altura difícil. Mais, agradeci muito por todas as pessoas que eu não conhecia mas que fizeram uma espécie de corrente positiva de bênçãos para me ajudar nos momentos mais críticos.
Estas redes que se criam são as que fazem realmente a diferença, com as pessoas que suavizam o nosso caminho, por mais difícil que ele seja.
Aquelas que seguram na nossa mão, que nos dão um abraço quando perdemos as forças, que nos seguram a cabeça para que o nosso vómito não nos arranque as entranhas. São as que nos dizem como estamos lindas, mesmo quando estamos com o aspeto de uma personagem do Halloween.
Imaginem adoecer em tempos de pandemia – seja com Covid-19 ou qualquer outra doença. Imaginem um internamento nesta altura. Zero visitas, zero abraços, zero toques, nada de pele com pele, coisas que tanto acalmam o nosso corpo e a nossa alma. Imaginem zero presenças. Pelo menos presenças reais. As virtuais ajudam, claro, mas perguntem aos portugueses que vivem fora do país, o pânico que muitos sentem de algum familiar adoecer e não estarem por perto para poder dar “aquele abraço”.
O pior da doença é estar sozinho.
Agora imaginem aqueles que estão a morrer. Aqueles que sabem ou sentem que têm os seus dias próximos do fim, pelo menos do fim desta etapa. O medo do sofrimento, da dor, do desconhecido. Sofrimento e solidão são duas palavras que não deviam coexistir.
Todos morremos sozinhos.
Sim, em última análise, no exato momento da morte estaremos sozinhos. No que poderá vir depois disso também, talvez. Mas aquilo sobre o qual vos falo agora são os meses, os dias, as horas, os minutos ou os segundos antes da morte acontecer. Ainda mais para aqueles que têm medo ou receio do morrer e da morte.
Os profissionais de saúde, cuidadores dos lares, etc, fazem o que podem para amenizar este sofrimento. Tenho a certeza. Muito à custa da sua própria saúde e equilíbrio mental. Mas, sorrisos com os olhos atrás das máscaras e toques com luvas de látex pelo meio, não são suficientes, não passam este calor humano que nos distingue, conforta e acompanha na altura do “fim”. Pelo menos na nossa cultura.
Como podemos humanizar mais a morte em tempos de pandemia?!
A Covid-19 veio dar um abanão coletivo. Está a criar um trauma coletivo, que vai ser passado muitas gerações mais adiante. Precisamos alertar, prevenir, mudar. É urgente continuar a semear esperança, sonhos, amor, e sobretudo, comunicar, comunicar e comunicar, mais e melhor (da melhor forma e com a melhor qualidade possíveis) porque é isso que nos vai ajudar nesta altura a seguir em frente. Em frente na vida e na morte. Nestes tempos de tanta tecnologia, podemos e devemos transmitir gestos e expressões que ajudem a ligar os nossos espíritos, com essas palavras que no quotidiano geralmente não dizemos.
O pior da morte é morrer sozinho.
Cada morte importa. Precisamos validar cada morte. Precisamos não ser um número na estatística. Precisamos mudar a nossa visão da morte. Precisamos pensar e falar sobre isto. Precisamos todos de aprender que a morte pode ser um estado de relaxamento profundo e tranquilo. Um descanso no ciclo da vida. Sabendo que nem sempre a morte que temos é a morte que escolhemos, tal como a vida. Precisamos aprender a aceitar. Precisamos honrar a morte e aprender com ela.
Os que ficam, quando não nos é possível acompanhar, precisam de aprender a fazer o luto deles, de quem morreu sozinho. Soltar a culpa, a vergonha, o ressentimento. Aceitar, valorizando o que acreditamos possa ter facilitado o momento e ajudado no processo da sua morte. Perceber de que maneiras a vida desse que morreu se cruzou com a nossa, honrando e lembrando essa vida. Falando dessa vida que terminou, aos nossos filhos, lembrando as coisas boas, escrevendo a sua história para a perpetuar.
O luto prepara-se em vida.
Valorizando aquela pessoa, a nossa relação com ela, tornando audíveis as suas palavras, tornando visíveis gestos, toque, ações.
Um coração cheio de amor, cheio de bons momentos, carregado de boas memórias e embrulhado em esperança, consegue morrer bem, ainda que sozinho.
Deixe um comentário